Peito-Bomba


Hora de ponta numa estação suja de comboio, um incómodo cheiro a pessoas, um incómodo cheiro a mim; cheiro a gasto, cheiro a uso, cheiro a cotovelos raspados e pernas doridas, tenho a mão suada no bolso do casaco e a outra em frente ao nariz, fora de mim, a explosão crescente e o desejo de ser eu a atear o fogo. Do outro lado. Quero ir, tenho pressa de voltar a casa há um jantar à minha espera espero que seja carne e que seja boa e espero que não me perguntem se o dia correu bem ou como vai o trabalho, aposto que vou começar a chorar porque vou ter que lhes dizer que não cheguei a sair do comboio, uma bomba não me deixou continuar. Fora. Não posso telefonar agora, ela deve estar ainda chateada por eu não ter retribuído as chamadas ontem à noite, o melhor é esperar um pouco até estarmos juntos e eu pedir-lhe desculpa pessoalmente, sou capaz de comprar uma flor, ou duas, um pequeno apoio colorido em troca de umas moedas, vou ver se ainda há lojas abertas mas tenho que passar por esta gente toda que parou de repente, e eu parei de repente e eu tremi, senti, explodi de repente. Um pouco mais à frente. A idiota da empregada esqueceu-se outra vez que só bebo café com adoçante, parece que é de propósito, venho a este café todos os dias e nunca se lembra que não gosto de açúcar, o melhor que tenho a fazer é virar as costas e ir-me embora, vou fazer questão que ela me veja a ir embora talvez assim se aperceba o porquê de eu estar com pressa, não pelo café ou pelo mau serviço, mas porque tinha o meu corpo incinerado à espera. Ainda dentro do restaurante. Raio da mulher malcriada, ando a contar trocos para comprar leite no sítio mais barato, se calhar ainda sobra para aqueles chocolates que o miúdo gosta e depois de aturar esta gente o melhor que tenho é o sorriso dele, e ele gosta do meu, disso tenho a certeza, e espero que ele se lembre sempre de como sorríamos um para o outro, é isto que penso e que vou ter saudades, é isto que vou deixar de ter não tarda nada quando o prédio começar a desabar, e toda eu a desabar.

Dois


- A terra não é redonda - teimou o primeiro velho, irritado com o seu parceiro e ele não gostava de se repetir. Desta vez a palavra "terra" saiu tão alto que dois ou três pássaros que estavam pousados naquela árvore levantaram voo em protesto. O segundo velhote tirou a boina e mostrou a cabeça calva com o pouco cabelo grisalho despenteado, com algumas gotas de suor a passearem por aquele espaço que, há uns anos atrás, era cabelo negro. Talvez pelo cansaço e calor, ele não respondeu, preferiu ficar a olhar para os pássaros que já iam longe, eram só pontos negros no céu, ou pelo menos era o que ele pensava ver, já tinha aprendido a não se fiar na vista fraca. Parou um pouco e o outro, ansioso, esperava a resposta à provocação. Ofendeu-se, quando viu que o seu companheiro preferia olhar para os pássaros do que lhe dar atenção - sabes que também não há pássaros? - continuou, a tentar roubar alguma reacção. No céu já não havia nada para ver e o segundo velho, calmo, ignorou esta segunda afirmação e ergueu-se do banco. Levou os dedos à boina e despediu-se com um sorriso. O outro mudou de expressão, de irritado para triste. Encostou-se para trás e cruzou os braços, a olhar na direcção oposta à que o outro se ia embora. Ainda murmurou qualquer coisa entre dentes mas a única coisa que se percebeu foi a palavra pássaros. E devagar chegou a casa, sem poder andar muito depressa não fosse a perna começar a doer novamente e ter que voltar a pegar na bengala, a parecer um velho. Ele era velho, só não queria ajuda dos outros. Antes de levar a chave à porta olhou para cima e o céu azul escuro de fim de tarde estava vazio, sem pássaro nenhum. Comeu, apertou a bochecha rosada da sua mulher enquanto ela lavava a louça e adormeceu a ver televisão, até ao momento que o telefone tocou e, a coxear para se despachar, atendeu o telefone só para ouvir uma voz a chorar de dor a anunciar uma morte, a morte do seu amigo, ainda há pouco ele estava tão bem lá no jardim comigo, não parecia doente ou em baixo, parecia o mesmo de sempre teimoso e bruto. Acordou a mulher e contou-lhe, volta para a cama, coitado já era velho e o coração era fraquinho, calha a todos. Mas ele não conseguiu dormir ficou a olhar para o tecto embalado pelo relógio de parede. O quarto estava escuro e frio e o lençol incomodava com um peso de saudades, a mulher acabou por adormecer e entrar num ritmo de respiração suave, ele olhou para ela e pensou o quanto dói perder alguém, retirarem-se assim pessoas da nossa vida sem perguntar, este arrancar constante de ar. Quase a dormir, a querer acordar a mulher e dar-lhe um beijo, agradecer-lhe por tudo, agarrou com força uma almofada, quase a jurar que algures no tecto escuro do quarto estavam os pássaros que há pouco tinham fugido.

Um


Senhor de azul não me leve ainda não sou velho e pago as minhas contas, juro que sim, que sou bom e cumpro as regras, nem sequer gosto de beber. aquele ali não era eu, era um rapaz mais velho e com mais barba, acho que ele mora com muita gente para os lados do rio, ele tem um emprego decente mas às vezes estraga-se. Mas não era eu, não podia ser, tenho estado aqui o tempo todo. Mas vai-me levar para onde senhor da farda? eu já disse que não sou eu, nem sequer sou daqui, sou dali ao pé da estrada, aquela que é escura e que ninguém gosta de passar com medo. Mas se me vai levar eu quero um senhor de gravata, um amigo que me faz o favor de limpar o cadastro e o dinheiro na carteira, neste amigo com a corda da forca ao contrário, com cores e padrões, neste sim posso confiar. Posso não posso? Devo poder, ele tem um fato tão caro e tão brilhante, penteia-se como se fosse jovem e faz a barba todos os dias antes de sair de casa e dar um beijo na mulher, às vezes quase que fecha a porta com força a mais mas o miúdo que dorme lá em cima não acorda. É um homem de família, o outro de azul é que já não sei. Não confio nele, já li muitos jornais para saber o que a casa gasta. Este aqui é amigo, ele quer-me ajudar a lavar as mãos e assim descobrirem o outro tipo, aquele da barba que tem um problema com a bebida. O senhor da gravata levou-me ao homem de negro. Este tem ar de coveiro, parece zangado, os cantos da boca quase que deitam espuma quando ele me diz que sou culpado. A mão do senhor da gravata encontra a minha num aperto profissional, ele acha que daqui a uns tempos podemos voltar e falar com outro senhor de preto, talvez um preto mais claro espero eu. Vira as costas e vai procurar outro amigo, espero que ele encontre coitado, ele precisa do dinheiro para sustentar a família. E lá vem o homem da farda com os olhos quase invisíveis tapados pelo chapéu, e tão sério que ele está, parece que viu um fantasma ou que cometi algum crime. Do cinto dele saem umas algemas e eu disse-lhe senhor de azul é melhor prender-me antes que estas mãos encontrem outra garganta.