Vida inversa

o chapéu mal me cobria da chuva insistente empurrada pelo vento. apertei o cachecol contra o pescoço e continuei a descer a rua, escorregadia e escura que demorava horas, dias, estendia-se no tempo, arrastava-se para fora de mim, envolta num manto de cheiro a terra molhada e gasolina. as janelas adoentadas de um azul frouxo da televisão semi-acesa, com as pessoas tambem elas semi-acesas, através de um cortinado leve quase transparente, apetecia-me estar lá, semi-aceso e quente, mas pouco de mim quis parar, estavam muitos passos desenhados no chão prontos para eu os dar. por essa altura apercebi-me de que eu estar ali era irrelevante para a água que caía, podia eu estar abrigado que a chuva continuaria a cair. assim deixei a frustração da roupa abraçada ao corpo e durante os minutos ou quem sabe horas que me sobravam da rua caminhei como se não chovesse. ou como se não existisse a rua. simplesmente como se tudo fosse um desenho que uma criança há anos atrás guardou e agora, crescida adolescente idoso, vida inversa, encontra numa pasta pelo meio do pó, um coração e outros papéis pelo meio o tal desenho, mal feito, mal entendido, pouco claro. a criança entretanto, agora adulta, esqueceu-se do que eram aqueles riscos, lembra-se apenas que queria ficar com eles. guardei a rua longe de mim, no passado etereo desfeito com estes dedos, peguei nos dias e rasguei-os, estes dias de fotografias velhas repetidas e desfocadas, estas fotografias de palácios cretinos e sorrisos falecidos, estas ruas, esta rua, este estar longe de onde se está.

Verão


Então. Quer-se um texto mas das mãos só escorre aos poucos o Verão que está quase a despedir-se e, aos poucos, nós também. Há um "eu" em todos os minutos que passam a desaparecer. Portanto, em vez de me perguntar onde estarei quando o Verão terminar, como fez aquele cuja idade eu quase tenho, a idade que ele deixou em Paris, recupero o que me deixo. Em frente à casa de madeira costumava ouvir as árvores e o céu, em bicos de pés encostado ao parapeito da janela. Ainda longe, os montes, o árido, a paisagem como folha em branco e eu a querer estar em toda a parte mas sabia que nunca ia estar em toda a parte. Os campos foram ficando mais secos, tinha muita sede na altura, bem como aquele cão castanho que, sempre com a língua de fora, ia-se escondendo do sol na sombra de um muro de pedra inacabado. Houve uma altura em que a sede era tanta que deixei a casa para trás, usámos a madeira da casa para bloquear a porta, era como se me tivessem tirado a boca para eu não gritar. Devagar despedi-me de todo o lado e tive a certeza de que nunca ia estar em toda a parte. Substituiu-se pelo cimento, as persianas amareladas empurravam o sol para fora e havia fresco. Cresci e envelheci à janela, não importava o calor entrar, eu queria estar onde estava o meu olhar. Hoje que já não acordo sem dores e esqueço-me tanto apenas tenho mais um Verão para me lembrar a vontade de estar em toda a parte e por onde passei e os sítios onde não vou estar porque os sítios nunca estiveram fora da janela mas sempre dentro de mim.

Tintas


Arranjas-me um cigarro? Obrigado, deixa estar, tenho aqui lume. Vou-me é sentar um bocado aqui pode ser? Que cansaço, isto parece que quanto mais um gajo se esforça menos recompensa tem. Eu sei que tenho mau aspecto, a barba está grande e a roupa suja, mas as coisas nem sempre foram assim. Como é que te chamas? Os meus amigos chamam-me Tintas, eu dantes era um grande pintor, mal acabei a primária o meu pai pôs-me a trabalhar com ele, os outros miúdos a brincar nos recreios e eu que acordava todos os dias às seis da manhã ficava a vê-los e a querer ter a vida deles, o jardim do vizinho parece sempre melhor, não é? Mas até à tua idade era o que eu fazia, trabalhava de dia, saía à noite. Arranjei uma casa com uma rapariga, fomos viver longe da cidade, a umas quantas paragens de comboio daqui. Infelizmente começámos a discutir muito sabes? Não deves saber, és muito novo. Parecíamos um daqueles casais cómicos de televisão só que acabava sempre tudo em choro e tristeza e nunca em risos. Eu saía, chateado com a vida, ia ao primeiro bar e enquanto houvesse dinheiro na carteira havia vício. Mas claro, deixou de haver dinheiro. Deixou de haver casa, também. Já não pintava há meses, nem sabia o que era trabalhar. Entretanto tinha um filho. A mulher disse-me que não era meu, mas era só para eu não o ver e as minhas mãos dependentes não lhe tocarem na pele ainda pura de recém-pessoa. E eu alinhei nesse jogo macabro de distâncias. Ela dava-me dinheiro às vezes, eu desaparecia e voltava, pior, inventava histórias, as mesmas que já tinha repetido em casa dos meus pais e tios. O meu irmão tinha vergonha de mim, encontrava-me com ele às escondidas atrás do prédio dele sempre de noite e ele punha-me dinheiro na mão e fazia-me prometer coisas, eu mentia e dizia que sim senhor, vou-me tratar, é só uma fase má. A família começou a desaparecer, cada vez sabia menos deles e então roubei, uns carros, umas carteiras no metro. Fui preso e bateram-me e o Tintas no chão com o lábio aberto a chorar e a chamar pela mãe, alguém na cela ao lado riu-se e eu quis gritar mais mas não era da dor dos pontapés mas da dor de ser eu. Saí zangado, percebes? Acabas por não ter culpa, é só empurrão atrás de empurrão, como aqueles jogos das arcadas que tens que bater numa bola e ela andar pela mesa a rebolar, eu andava assim, cada vez era pior, dormia na rua e tinha tanta pena de mim, queria cada vez mais viver para o momento de euforia em que não havia nada, nem prisões nem eu, nem dia e noite, era não-pessoa em ascensão e queda, vezes sem conta e não interessava o banco de jardim que era cama, acordar e ser vizinho numa casa de putas e cheirar aquele cheiro de suor e beatas e tudo a rodopiar, não havia ninguém para me parar. Agora ando aqui a arrumar carros. Não importa, andam aí uns a limpar o cu a dinheiro e eu aqui a contar trocos para uma carcaça. Que se lixe, não é? Não sejas parvo miúdo, eles que se fodam. Eles que venham viver um dia comigo, que estendam a mão a pedir e consigam olhar nos olhos das pessoas. Eles que se fodam, que nunca levantaram um dedo a não ser para apontar e que vivem nas casinhas, no conforto das marcas e das roupas, das televisões e telemóveis, dos amigos e amigas e o filho vai direitinho para a faculdade que o pai arranja emprego e dá a gravata bonita dele para usar quando for preciso e os outros são paisagem, sou uma pincelada mal dada no quadro deles que vão passear com a família para o restaurante, nem vão comer tudo se calhar e nós, na rua, a morrer de fome, presos dentro de nós a um vício dos outros. Eles que se fodam, restam-me uns anos, gostava de ver o meu filho e a minha mãe, acho que foi morar com o meu irmão. Passei no outro dia pela casa onde morava e estava lá uma velhota gorda a estender roupa que olhou para mim com ar de má, tenho ar de quem quer roubar a casa dela. Mas a casa era minha e a vida era minha. E eu já fui meu, agora não sou nem pertenço, sou um número, uma estatística num jornal, uma reportagem à hora de jantar ou alguma coisa que as crianças têm medo e quando me vêm agarram a mão dos pais com força enquanto eles me dão umas moedas não sabem o que se passa. Sabes que mais miúdo? Nem eu sei o que se passa aqui. Sei que andamos aqui como aqueles jogos, cada um a tentar dar com mais força, cada um a engordar mais à custa da magreza dos outros. Desculpa a seca, vou pregar para outra freguesia, faz de conta que nunca estive aqui a falar contigo. Faz de conta que nunca estive aqui a falar contigo.

1300 AV, C-60, #21


As persianas mal fechadas deixavam entrar alguma luz naquela sala quase vazia. Digo quase porque no centro tinham deixado uma cadeira de plástico, daquelas das esplanadas, que ameaçam constantemente a sua quebra. O meu peso, hoje maior que nunca, aguentou-se. Havia uma dor ali, acho que era a minha, mas o meu desejo de não estar ali toldava-me o pensamento lógico, neste momento não sei se estive, de facto, naquela sala. Mas pelo menos vou contar o que se passou por lá, nesses instantes. Olhei uma outra vez em volta para as paredes meio amarelas da luz, onde se viam pequenas partículas de pó a pairar e, segundos mais tarde, o fumo do meu cigarro. Retirei um gravador do bolso, confirmei se ainda tinha espaço na cassete. Parece que não. Felizmente estava preparado, retirei esta, já usada, e coloquei-a junto às outras que estavam num pequeno saco de pano que há já quatro dias carregava e enchia. Escrevi "quarto dia, hora nove" na etiqueta de uma nova cassete e, pouco depois de começar a gravar, falei. E foi isto que eu disse, as palavras que saem da pequena máquina. "Acho que é a minha última cassete, portanto é hora de me despedir. Espero que saibas que nunca me esqueci de ti e, depois de tanto tempo, só te tenho a agradecer, embora eu tenha sido má pessoa; desde os primeiros tempos, quando me embebedava e manchava os lençóis comigo, com a nódoa que era. Ou quando fiz coisas tão atrozes que estive dias a fio sem aparecer em casa por não te conseguir olhar. Agora que penso nisso um pouco, foi a primeira vez que te pedi desculpa. Não me desculpei de mais nada, nem de quando te quis agredir ou te chamei nomes. Não me desculpei quando disse ao nosso filho que ele era um erro. Não o fiz também quando comprei uma arma, lembro-me o quanto insististe para eu não o fazer, como a violência não resolve nada. Foi quando premi o gatilho que te pedi desculpa uma segunda vez. Mas não me ouviste".

Peito-Bomba


Hora de ponta numa estação suja de comboio, um incómodo cheiro a pessoas, um incómodo cheiro a mim; cheiro a gasto, cheiro a uso, cheiro a cotovelos raspados e pernas doridas, tenho a mão suada no bolso do casaco e a outra em frente ao nariz, fora de mim, a explosão crescente e o desejo de ser eu a atear o fogo. Do outro lado. Quero ir, tenho pressa de voltar a casa há um jantar à minha espera espero que seja carne e que seja boa e espero que não me perguntem se o dia correu bem ou como vai o trabalho, aposto que vou começar a chorar porque vou ter que lhes dizer que não cheguei a sair do comboio, uma bomba não me deixou continuar. Fora. Não posso telefonar agora, ela deve estar ainda chateada por eu não ter retribuído as chamadas ontem à noite, o melhor é esperar um pouco até estarmos juntos e eu pedir-lhe desculpa pessoalmente, sou capaz de comprar uma flor, ou duas, um pequeno apoio colorido em troca de umas moedas, vou ver se ainda há lojas abertas mas tenho que passar por esta gente toda que parou de repente, e eu parei de repente e eu tremi, senti, explodi de repente. Um pouco mais à frente. A idiota da empregada esqueceu-se outra vez que só bebo café com adoçante, parece que é de propósito, venho a este café todos os dias e nunca se lembra que não gosto de açúcar, o melhor que tenho a fazer é virar as costas e ir-me embora, vou fazer questão que ela me veja a ir embora talvez assim se aperceba o porquê de eu estar com pressa, não pelo café ou pelo mau serviço, mas porque tinha o meu corpo incinerado à espera. Ainda dentro do restaurante. Raio da mulher malcriada, ando a contar trocos para comprar leite no sítio mais barato, se calhar ainda sobra para aqueles chocolates que o miúdo gosta e depois de aturar esta gente o melhor que tenho é o sorriso dele, e ele gosta do meu, disso tenho a certeza, e espero que ele se lembre sempre de como sorríamos um para o outro, é isto que penso e que vou ter saudades, é isto que vou deixar de ter não tarda nada quando o prédio começar a desabar, e toda eu a desabar.

Dois


- A terra não é redonda - teimou o primeiro velho, irritado com o seu parceiro e ele não gostava de se repetir. Desta vez a palavra "terra" saiu tão alto que dois ou três pássaros que estavam pousados naquela árvore levantaram voo em protesto. O segundo velhote tirou a boina e mostrou a cabeça calva com o pouco cabelo grisalho despenteado, com algumas gotas de suor a passearem por aquele espaço que, há uns anos atrás, era cabelo negro. Talvez pelo cansaço e calor, ele não respondeu, preferiu ficar a olhar para os pássaros que já iam longe, eram só pontos negros no céu, ou pelo menos era o que ele pensava ver, já tinha aprendido a não se fiar na vista fraca. Parou um pouco e o outro, ansioso, esperava a resposta à provocação. Ofendeu-se, quando viu que o seu companheiro preferia olhar para os pássaros do que lhe dar atenção - sabes que também não há pássaros? - continuou, a tentar roubar alguma reacção. No céu já não havia nada para ver e o segundo velho, calmo, ignorou esta segunda afirmação e ergueu-se do banco. Levou os dedos à boina e despediu-se com um sorriso. O outro mudou de expressão, de irritado para triste. Encostou-se para trás e cruzou os braços, a olhar na direcção oposta à que o outro se ia embora. Ainda murmurou qualquer coisa entre dentes mas a única coisa que se percebeu foi a palavra pássaros. E devagar chegou a casa, sem poder andar muito depressa não fosse a perna começar a doer novamente e ter que voltar a pegar na bengala, a parecer um velho. Ele era velho, só não queria ajuda dos outros. Antes de levar a chave à porta olhou para cima e o céu azul escuro de fim de tarde estava vazio, sem pássaro nenhum. Comeu, apertou a bochecha rosada da sua mulher enquanto ela lavava a louça e adormeceu a ver televisão, até ao momento que o telefone tocou e, a coxear para se despachar, atendeu o telefone só para ouvir uma voz a chorar de dor a anunciar uma morte, a morte do seu amigo, ainda há pouco ele estava tão bem lá no jardim comigo, não parecia doente ou em baixo, parecia o mesmo de sempre teimoso e bruto. Acordou a mulher e contou-lhe, volta para a cama, coitado já era velho e o coração era fraquinho, calha a todos. Mas ele não conseguiu dormir ficou a olhar para o tecto embalado pelo relógio de parede. O quarto estava escuro e frio e o lençol incomodava com um peso de saudades, a mulher acabou por adormecer e entrar num ritmo de respiração suave, ele olhou para ela e pensou o quanto dói perder alguém, retirarem-se assim pessoas da nossa vida sem perguntar, este arrancar constante de ar. Quase a dormir, a querer acordar a mulher e dar-lhe um beijo, agradecer-lhe por tudo, agarrou com força uma almofada, quase a jurar que algures no tecto escuro do quarto estavam os pássaros que há pouco tinham fugido.

Um


Senhor de azul não me leve ainda não sou velho e pago as minhas contas, juro que sim, que sou bom e cumpro as regras, nem sequer gosto de beber. aquele ali não era eu, era um rapaz mais velho e com mais barba, acho que ele mora com muita gente para os lados do rio, ele tem um emprego decente mas às vezes estraga-se. Mas não era eu, não podia ser, tenho estado aqui o tempo todo. Mas vai-me levar para onde senhor da farda? eu já disse que não sou eu, nem sequer sou daqui, sou dali ao pé da estrada, aquela que é escura e que ninguém gosta de passar com medo. Mas se me vai levar eu quero um senhor de gravata, um amigo que me faz o favor de limpar o cadastro e o dinheiro na carteira, neste amigo com a corda da forca ao contrário, com cores e padrões, neste sim posso confiar. Posso não posso? Devo poder, ele tem um fato tão caro e tão brilhante, penteia-se como se fosse jovem e faz a barba todos os dias antes de sair de casa e dar um beijo na mulher, às vezes quase que fecha a porta com força a mais mas o miúdo que dorme lá em cima não acorda. É um homem de família, o outro de azul é que já não sei. Não confio nele, já li muitos jornais para saber o que a casa gasta. Este aqui é amigo, ele quer-me ajudar a lavar as mãos e assim descobrirem o outro tipo, aquele da barba que tem um problema com a bebida. O senhor da gravata levou-me ao homem de negro. Este tem ar de coveiro, parece zangado, os cantos da boca quase que deitam espuma quando ele me diz que sou culpado. A mão do senhor da gravata encontra a minha num aperto profissional, ele acha que daqui a uns tempos podemos voltar e falar com outro senhor de preto, talvez um preto mais claro espero eu. Vira as costas e vai procurar outro amigo, espero que ele encontre coitado, ele precisa do dinheiro para sustentar a família. E lá vem o homem da farda com os olhos quase invisíveis tapados pelo chapéu, e tão sério que ele está, parece que viu um fantasma ou que cometi algum crime. Do cinto dele saem umas algemas e eu disse-lhe senhor de azul é melhor prender-me antes que estas mãos encontrem outra garganta.