Vida inversa

o chapéu mal me cobria da chuva insistente empurrada pelo vento. apertei o cachecol contra o pescoço e continuei a descer a rua, escorregadia e escura que demorava horas, dias, estendia-se no tempo, arrastava-se para fora de mim, envolta num manto de cheiro a terra molhada e gasolina. as janelas adoentadas de um azul frouxo da televisão semi-acesa, com as pessoas tambem elas semi-acesas, através de um cortinado leve quase transparente, apetecia-me estar lá, semi-aceso e quente, mas pouco de mim quis parar, estavam muitos passos desenhados no chão prontos para eu os dar. por essa altura apercebi-me de que eu estar ali era irrelevante para a água que caía, podia eu estar abrigado que a chuva continuaria a cair. assim deixei a frustração da roupa abraçada ao corpo e durante os minutos ou quem sabe horas que me sobravam da rua caminhei como se não chovesse. ou como se não existisse a rua. simplesmente como se tudo fosse um desenho que uma criança há anos atrás guardou e agora, crescida adolescente idoso, vida inversa, encontra numa pasta pelo meio do pó, um coração e outros papéis pelo meio o tal desenho, mal feito, mal entendido, pouco claro. a criança entretanto, agora adulta, esqueceu-se do que eram aqueles riscos, lembra-se apenas que queria ficar com eles. guardei a rua longe de mim, no passado etereo desfeito com estes dedos, peguei nos dias e rasguei-os, estes dias de fotografias velhas repetidas e desfocadas, estas fotografias de palácios cretinos e sorrisos falecidos, estas ruas, esta rua, este estar longe de onde se está.

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