Dois


- A terra não é redonda - teimou o primeiro velho, irritado com o seu parceiro e ele não gostava de se repetir. Desta vez a palavra "terra" saiu tão alto que dois ou três pássaros que estavam pousados naquela árvore levantaram voo em protesto. O segundo velhote tirou a boina e mostrou a cabeça calva com o pouco cabelo grisalho despenteado, com algumas gotas de suor a passearem por aquele espaço que, há uns anos atrás, era cabelo negro. Talvez pelo cansaço e calor, ele não respondeu, preferiu ficar a olhar para os pássaros que já iam longe, eram só pontos negros no céu, ou pelo menos era o que ele pensava ver, já tinha aprendido a não se fiar na vista fraca. Parou um pouco e o outro, ansioso, esperava a resposta à provocação. Ofendeu-se, quando viu que o seu companheiro preferia olhar para os pássaros do que lhe dar atenção - sabes que também não há pássaros? - continuou, a tentar roubar alguma reacção. No céu já não havia nada para ver e o segundo velho, calmo, ignorou esta segunda afirmação e ergueu-se do banco. Levou os dedos à boina e despediu-se com um sorriso. O outro mudou de expressão, de irritado para triste. Encostou-se para trás e cruzou os braços, a olhar na direcção oposta à que o outro se ia embora. Ainda murmurou qualquer coisa entre dentes mas a única coisa que se percebeu foi a palavra pássaros. E devagar chegou a casa, sem poder andar muito depressa não fosse a perna começar a doer novamente e ter que voltar a pegar na bengala, a parecer um velho. Ele era velho, só não queria ajuda dos outros. Antes de levar a chave à porta olhou para cima e o céu azul escuro de fim de tarde estava vazio, sem pássaro nenhum. Comeu, apertou a bochecha rosada da sua mulher enquanto ela lavava a louça e adormeceu a ver televisão, até ao momento que o telefone tocou e, a coxear para se despachar, atendeu o telefone só para ouvir uma voz a chorar de dor a anunciar uma morte, a morte do seu amigo, ainda há pouco ele estava tão bem lá no jardim comigo, não parecia doente ou em baixo, parecia o mesmo de sempre teimoso e bruto. Acordou a mulher e contou-lhe, volta para a cama, coitado já era velho e o coração era fraquinho, calha a todos. Mas ele não conseguiu dormir ficou a olhar para o tecto embalado pelo relógio de parede. O quarto estava escuro e frio e o lençol incomodava com um peso de saudades, a mulher acabou por adormecer e entrar num ritmo de respiração suave, ele olhou para ela e pensou o quanto dói perder alguém, retirarem-se assim pessoas da nossa vida sem perguntar, este arrancar constante de ar. Quase a dormir, a querer acordar a mulher e dar-lhe um beijo, agradecer-lhe por tudo, agarrou com força uma almofada, quase a jurar que algures no tecto escuro do quarto estavam os pássaros que há pouco tinham fugido.

1 comments:

Anónimo disse...

ai o c"##$%!


sam

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