Tintas


Arranjas-me um cigarro? Obrigado, deixa estar, tenho aqui lume. Vou-me é sentar um bocado aqui pode ser? Que cansaço, isto parece que quanto mais um gajo se esforça menos recompensa tem. Eu sei que tenho mau aspecto, a barba está grande e a roupa suja, mas as coisas nem sempre foram assim. Como é que te chamas? Os meus amigos chamam-me Tintas, eu dantes era um grande pintor, mal acabei a primária o meu pai pôs-me a trabalhar com ele, os outros miúdos a brincar nos recreios e eu que acordava todos os dias às seis da manhã ficava a vê-los e a querer ter a vida deles, o jardim do vizinho parece sempre melhor, não é? Mas até à tua idade era o que eu fazia, trabalhava de dia, saía à noite. Arranjei uma casa com uma rapariga, fomos viver longe da cidade, a umas quantas paragens de comboio daqui. Infelizmente começámos a discutir muito sabes? Não deves saber, és muito novo. Parecíamos um daqueles casais cómicos de televisão só que acabava sempre tudo em choro e tristeza e nunca em risos. Eu saía, chateado com a vida, ia ao primeiro bar e enquanto houvesse dinheiro na carteira havia vício. Mas claro, deixou de haver dinheiro. Deixou de haver casa, também. Já não pintava há meses, nem sabia o que era trabalhar. Entretanto tinha um filho. A mulher disse-me que não era meu, mas era só para eu não o ver e as minhas mãos dependentes não lhe tocarem na pele ainda pura de recém-pessoa. E eu alinhei nesse jogo macabro de distâncias. Ela dava-me dinheiro às vezes, eu desaparecia e voltava, pior, inventava histórias, as mesmas que já tinha repetido em casa dos meus pais e tios. O meu irmão tinha vergonha de mim, encontrava-me com ele às escondidas atrás do prédio dele sempre de noite e ele punha-me dinheiro na mão e fazia-me prometer coisas, eu mentia e dizia que sim senhor, vou-me tratar, é só uma fase má. A família começou a desaparecer, cada vez sabia menos deles e então roubei, uns carros, umas carteiras no metro. Fui preso e bateram-me e o Tintas no chão com o lábio aberto a chorar e a chamar pela mãe, alguém na cela ao lado riu-se e eu quis gritar mais mas não era da dor dos pontapés mas da dor de ser eu. Saí zangado, percebes? Acabas por não ter culpa, é só empurrão atrás de empurrão, como aqueles jogos das arcadas que tens que bater numa bola e ela andar pela mesa a rebolar, eu andava assim, cada vez era pior, dormia na rua e tinha tanta pena de mim, queria cada vez mais viver para o momento de euforia em que não havia nada, nem prisões nem eu, nem dia e noite, era não-pessoa em ascensão e queda, vezes sem conta e não interessava o banco de jardim que era cama, acordar e ser vizinho numa casa de putas e cheirar aquele cheiro de suor e beatas e tudo a rodopiar, não havia ninguém para me parar. Agora ando aqui a arrumar carros. Não importa, andam aí uns a limpar o cu a dinheiro e eu aqui a contar trocos para uma carcaça. Que se lixe, não é? Não sejas parvo miúdo, eles que se fodam. Eles que venham viver um dia comigo, que estendam a mão a pedir e consigam olhar nos olhos das pessoas. Eles que se fodam, que nunca levantaram um dedo a não ser para apontar e que vivem nas casinhas, no conforto das marcas e das roupas, das televisões e telemóveis, dos amigos e amigas e o filho vai direitinho para a faculdade que o pai arranja emprego e dá a gravata bonita dele para usar quando for preciso e os outros são paisagem, sou uma pincelada mal dada no quadro deles que vão passear com a família para o restaurante, nem vão comer tudo se calhar e nós, na rua, a morrer de fome, presos dentro de nós a um vício dos outros. Eles que se fodam, restam-me uns anos, gostava de ver o meu filho e a minha mãe, acho que foi morar com o meu irmão. Passei no outro dia pela casa onde morava e estava lá uma velhota gorda a estender roupa que olhou para mim com ar de má, tenho ar de quem quer roubar a casa dela. Mas a casa era minha e a vida era minha. E eu já fui meu, agora não sou nem pertenço, sou um número, uma estatística num jornal, uma reportagem à hora de jantar ou alguma coisa que as crianças têm medo e quando me vêm agarram a mão dos pais com força enquanto eles me dão umas moedas não sabem o que se passa. Sabes que mais miúdo? Nem eu sei o que se passa aqui. Sei que andamos aqui como aqueles jogos, cada um a tentar dar com mais força, cada um a engordar mais à custa da magreza dos outros. Desculpa a seca, vou pregar para outra freguesia, faz de conta que nunca estive aqui a falar contigo. Faz de conta que nunca estive aqui a falar contigo.

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